Os fundamentos básicos da educação escolar devem estar
relacionados à constituição de um Estado democrático definido como “uma forma
de sociabilidade que penetra em todos os espaços sociais”(Brasil 1997 a , p. 19), onde a noção
de cidadania amplie o conceito de cidadania para o de cidadania ativa.
O
compromisso com a formação do cidadão ativo faz com que a escolarização assuma
alguns pontos básicos como: dignidade da
pessoa humana, igualdade de direitos, participação e co-responsabilidade na
vida social. A escola precisa, segundo
os PCN, preocupar-se em tratar tanto valores quanto conhecimentos que “permitam
desenvolver as capacidades necessárias para a participação social
efetiva”. Mas indagamos sobre velhas
questões: são as disciplinas escolares
clássicas incapazes de desenvolver tais capacidades necessárias para a
participação social efetiva?
Na
literatura pedagógica, foi sempre uma constante a preocupação de trazer a
realidade para dentro da escola.
Verifica-se que em qualquer escola de ensino fundamental ouvimos os
alunos questionando a utilidade dos conhecimentos que aprendem na escola
(utilização do aprendizado). Os PCN
apontam a importância das disciplinas para que os alunos dominem o saber
socialmente acumulado pela sociedade.
Se o saber
socialmente acumulado não da conta de entender a realidade e seus problemas
mais urgentes, por que ele é tão importante e central na escola? Por que
deveria ser mantido nessa posição de centralidade? Os PCN não nos respondem,
apenas nos apresentam mais um conjunto de temas que deveria ser tratado pela
escola, “ocupando o mesmo lugar de importância” das disciplinas clássicas, mas
sem se configurar em
disciplina. Os PCN
propõem que a integração se faça por temas transversais, por exemplo: ética, meio ambiente, saúde, pluralidade
cultural e orientação sexual, que perpassariam o conjunto das disciplinas, e
que determinados temas têm mais afinidades com certas disciplinas.
Como fazer
para que temas transversais e disciplinas ocupem o “mesmo lugar de importância”
no currículo se a lógica que preside a
estruturação curricular continuará sendo a estabelecida pelas diferentes
disciplinas? Que sentido fazem as
disciplinas se os temas candentes da vida em sociedade são tratados como temas
transversais? O núcleo central da
argumentação do MEC fundamenta-se na incapacidade da educação escolar de lidar
com a formação do cidadão ativo. A
partir daí vamos problematizar algumas questões como: a ideia do currículo disciplinar, sua suposta
incapacidade de dar conta da realidade pluridimensional, a criação de
mecanismos integradores disciplinares ou a superação desse tipo de estruturação
curricular.
AS DISCIPLINAS NÃO DÃO CONTA DA REALIDADE
A
globalização econômica, influenciada pelo capitalismo, torna fundamental que o
conhecimento também se globalize e passe a
integrar diferentes campos, sob o risco de se tornar inútil. O processo
de divisão do conhecimento é um processo no qual diferentes âmbitos de saber
vão-se destacando e configurando em especialidades, e algumas dessas
especialidades vão constituir disciplinas científicas. A disciplinarização do conhecimento
corresponde a um processo de seleção de dados considerados significativos e de
rejeição de outros, agrupando-se de forma coerente um conjunto de objetos de
estudo sob a rubrica de uma disciplina.
Trata-se de um processo histórico que se realiza nos limites de
determinados paradigmas.
Disciplinas
científicas não representam apenas campos do saber definidos por pressupostos
epistemológicos. São espaços de poder
instituídos, nos quais diferentes atores sociais buscam construir sua
hegemonia. A territorialização do
conhecimento é, portanto, uma forma de poder, na qual diferentes especialistas
delimitam rituais de iniciação. Esses
rituais envolvem o domínio não apenas do conhecimento, mas uma linguagem que
diferencia o especialista dos não-iniciados, essa linguagem que atua como
instrumento de diferenciação. Essas
disciplinas científicas tradicionais tornam-se incapazes de atuar isoladamente,
levando à criação de novas especialidades híbridas, menos restritas.
Santos
(1989) estabelece que, mais do que problematizar a validade do conhecimento, a
ciência hoje precisa questionar o sentido do conhecimento no mundo
contemporâneo. A concepção de ciência defendida
por Santos repousa sobre a idéia de que a separação entre verdade
epistemológica e verdade sociológica é insustentável. Na medida em que a pós-modernidade assuma um
conceito pragmático de ciência, cada disciplina científica passa a buscar
compreender e transformar o mundo, dissolver as fronteiras entre o saber
científico e o senso comum.
AS DISCIPLINAS ENTRAM NO CURRÍCULO
Nem todos os
campos de saber em que se subdivide o conhecimento científico têm lugar nos
currículos escolares, mesmo nos currículos de cursos profissionais. Quais os critérios para que existam
disciplinas ligadas ao conhecimento matemático, às ciências naturais, ao estudo
da língua, à geografia e à história? Por
que o privilégio dessas áreas do conhecimento em detrimento das ciências
sociais, da filosofia, geologia, por exemplo?
Os critérios para a seleção dos campos do saber representados no
currículo escolar não são científicos. A
criação de novos espaços curriculares para determinadas disciplinas mostra o
quanto se modificam os nossos currículos ao longo dos anos. Quais os critérios dessas mudanças?
De acordo
com Godson, analisando o caráter histórico da seleção de disciplinas que o
compõem, o currículo é entendido como construção, mais ou menos coletiva, de um
grupo de atores sociais que nele joga as suas crenças, convicções e seu
trabalho. Argumenta ainda que a gênese e
a permanência de uma disciplina no currículo são um processo de seleção e de
organização do conhecimento escolar para o qual convergem fatores lógicos,
epistemológicos, intelectuais, rituais, interesses de hegemonia e de controle,
conflitos culturais e questões pessoais.
Goodson
observou que uma disciplina escolar, ao ser criada, busca resolver um problema imediato
relacionado com mundo cotidiano dos alunos.
No entanto, para conseguir manter-se no currículo, precisa legitimar-se
como área de saber científico, transformando-se em uma disciplina formal e
distante da vida prática. Esse fato
aponta para a relação de utilidade prática do conhecimento escolar, com sua
capacidade de resolver problemas do dia-a-dia dos alunos, e a organização
disciplinar do currículo. A maioria das
disciplinas escolares estabelece-se no currículo não por constituir áreas
científicas importantes na sociedade, mas por se mostrar capaz de lidar com os
problemas cotidianos da vida em sociedade. Ao
mesmo tempo em que a entrada de uma
disciplina no currículo associa-se à utilidade prática imediata, a sua manutenção depende da
formalização do campo de estudos.
As
conclusões de Goodson mostram que tanto a criação de disciplinas escolares
quanto sua manutenção no currículo apontam para tradições de valorização de
determinados campos do conhecimento escolar, relacionados à origem social e ao
destino ocupacional da clientela: as classes
média e alta são preparadas academicamente para a vida profissional (ocupação
especializada), enquanto a baixa recebe um ensino ocupacional, mais utilitário,
mais relacionado a ocupações não profissionais, nas quais trabalha a maioria
das pessoas.
A idéia de
utilidade do conhecimento, cujo critério é um dos mais potentes na criação das
disciplinas escolares, embora proclamada como fundamental nos discursos sobre a
escolarização, tende a não se transformar em realidade, porque o conhecimento
formal dissociado da prática constitui um poderoso elemento de diferenciação
social.
FUGINDO DA DISCIPLINA: TENTATIVAS FRUSTRADAS
As críticas à estruturação disciplinar dos
currículos centram-se em aspectos ligados ao interesse dos alunos, assim como
nos limites do próprio conceito de conhecimento. A divisão disciplinar do conhecimento escolar
é a responsável pela pouca relevância que parece Ter o que é ensinado nas
escolas, e dessa forma, o conhecimento escolar torna-se incapaz de ajustar-se
às questões práticas e vitais para a sociedade de hoje.
A disciplinarização curricular define uma organização inflexível que dificulta a realização de outras atividades que não as aulas tradicionais. Aulas sucessivas, com diferentes conteúdos teóricos e num curto espaço de tempo (de geografia para matemática, passando pela língua pátria, etc). As experiências prévias dos alunos são desvalorizadas em favor de uma lógica formalmente estabelecida por e para cada campo do saber.
A disciplinarização curricular define uma organização inflexível que dificulta a realização de outras atividades que não as aulas tradicionais. Aulas sucessivas, com diferentes conteúdos teóricos e num curto espaço de tempo (de geografia para matemática, passando pela língua pátria, etc). As experiências prévias dos alunos são desvalorizadas em favor de uma lógica formalmente estabelecida por e para cada campo do saber.
Os problemas
da realidade ultrapassam os limites de uma especialidade. Dessa visão, decorrem modelos de articulação
restritiva das disciplinas escolares, definidos por Piaget (1979) como
multidisciplinaridade. Um mesmo tema é
tratado por diferentes disciplinas em um planejamento integrado. Respeita-se a lógica disciplinar dos
diferentes campos do saber, apenas selecionando-se um tema de interesse social
que possa ser tratado por um conjunto de disciplinas como tema
fundamental. Há uma tendência à valorização
de determinados campos do saber, que são, freqüentemente, aqueles de maior
prestígio social, e dessa forma, a integração é prejudicada pelo domínio de uma
ou duas disciplinas.
Os processos de integração se realizam não por um tema externo, mas pelas próprias interseções entre os diferentes campos do saber. Elas devem partilhar espaços comuns que precisam ser tratadosem conjunto. Dessas integrações acabam
surgindo novas disciplinas acadêmicas na área de interseção entre duas
especialidades, novas especialidades interáreas.
A integração é feita pelas próprias disciplinas originais, criando uma nova
disciplina que mescla teorias e métodos originários das disciplinas-mãe. Essa integração foi denominada por Piaget
(1979) de interdisciplinaridade, e define um processo em que se efetiva uma
verdadeira intercomunicação disciplinar.
Os processos de integração se realizam não por um tema externo, mas pelas próprias interseções entre os diferentes campos do saber. Elas devem partilhar espaços comuns que precisam ser tratados
QUE SÃO OS TEMAS TRANSVERSAIS?
Os que são
propostos pelo MEC apresentam-se como mais uma tentativa de articulação entre
as diferentes disciplinas que compõem o currículo, tendo por justificativa a
incapacidade dessas mesmas disciplinas de dar conta da realidade social. A forma de articulação não está bem definida,
o que nos leva a imaginar que dificilmente se efetivará no currículo vivido das
diferentes escolas do país.
A base de estruturação do guia curricular do
MEC é a disciplina, não a disciplina científica, mas a disciplina escolar. Como são tratadas as disciplinas
tradicionais? Trata-se de disciplinas
isoladas com especificidades próprias que não são articuladas no documento, a
não ser naquilo em que naturalmente se articulam.
Os PCN
estão propondo a manutenção da lógica das disciplinas e a introdução de temas
transversais de relevância social. A
despeito dessa relevância, os temas transversais serão introduzidos sempre que
a lógica disciplinar permitir. Para que
os temas transversais funcionassem como eixo integrador das diferentes áreas do
currículo e deste com a realidade social, seria necessária uma articulação
entre as áreas e os temas transversais, ou seja, a seleção e a organização do
conhecimento de cada área deveria Ter por fundamento os temas
transversais. No entanto, os documentos
das áreas buscam os critérios de seleção
e organização de seus conteúdos nas próprias áreas, em uma suposta lógica interna
das disciplinas, e os temas devem ser posteriormente encaixados.
Os PCN não
embutem, em sua lógica, a centralidade que afirmam Ter os temas
transversais. Se os temas transversais
expressam as temáticas relevantes para a formação do aluno, por que não são
eles os princípios estruturadores do currículo?
Por que não fazer deles o núcleo central da estruturação curricular e
inserir “transversalmente” as diferentes áreas do conhecimento? O compromisso da ciência recortada em cada
disciplina deve ser com a prática social concreta que estabelece o sentido da
atividade científica. É o compromisso
com a realidade social.
Os temas
transversais como: o meio ambiente, saúde, orientação sexual, etc., embora não
correspondam a disciplinas formalmente estabelecidas pela comunidade
científica, poderiam constituir disciplinas escolares nas quais se garantiria o
enfoque científico multidisciplinar.
Essa constatação nos obriga a buscar entender por que os critérios de
relevância social do conhecimento estão ausentes da estruturação disciplinar
dos PCN. Percebemos, ao final desse trabalho, que os temas transversais,
apresentados como fundamentais para a atuação crítica do aluno na sociedade,
são, na realidade, postos em um patamar de importância inferior ao das disciplinas
na organização do guia curricular, mantendo as disciplinas escolares
tradicionais como centro do currículo.
TEXTO:
Parâmetros Curriculares Nacionais: a falácia de seus temas transversais
Por: Macedo,
Elizabeth F. In: Currículo: políticas e práticas – Moreira, Antonio F. B. p. 43 a 58
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