sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Parâmetros Curriculares Nacionais: A Falácia de seus Temas Transversais

     Os fundamentos básicos da educação escolar devem estar relacionados à constituição de um Estado democrático definido como “uma forma de sociabilidade que penetra em todos os espaços sociais”(Brasil 1997 a, p. 19), onde a noção de cidadania amplie o conceito de cidadania para o de cidadania ativa.

  O compromisso com a formação do cidadão ativo faz com que a escolarização assuma alguns pontos básicos como:  dignidade da pessoa humana, igualdade de direitos, participação e co-responsabilidade na vida social.  A escola precisa, segundo os PCN, preocupar-se em tratar tanto valores quanto conhecimentos que “permitam desenvolver as capacidades necessárias para a participação social efetiva”.  Mas indagamos sobre velhas questões:  são as disciplinas escolares clássicas incapazes de desenvolver tais capacidades necessárias para a participação social efetiva?

  Na literatura pedagógica, foi sempre uma constante a preocupação de trazer a realidade para dentro da escola.  Verifica-se que em qualquer escola de ensino fundamental ouvimos os alunos questionando a utilidade dos conhecimentos que aprendem na escola (utilização do aprendizado).  Os PCN apontam a importância das disciplinas para que os alunos dominem o saber socialmente acumulado pela sociedade. 

  Se o saber socialmente acumulado não da conta de entender a realidade e seus problemas mais urgentes, por que ele é tão importante e central na escola? Por que deveria ser mantido nessa posição de centralidade? Os PCN não nos respondem, apenas nos apresentam mais um conjunto de temas que deveria ser tratado pela escola, “ocupando o mesmo lugar de importância” das disciplinas clássicas, mas sem se configurar em disciplina.  Os PCN propõem que a integração se faça por temas transversais, por exemplo:  ética, meio ambiente, saúde, pluralidade cultural e orientação sexual, que perpassariam o conjunto das disciplinas, e que determinados temas têm mais afinidades com certas disciplinas. 

  Como fazer para que temas transversais e disciplinas ocupem o “mesmo lugar de importância” no currículo se a lógica que preside a  estruturação curricular continuará sendo a estabelecida pelas diferentes disciplinas?  Que sentido fazem as disciplinas se os temas candentes da vida em sociedade são tratados como temas transversais?  O núcleo central da argumentação do MEC fundamenta-se na incapacidade da educação escolar de lidar com a formação do cidadão ativo.  A partir daí vamos problematizar algumas questões como:  a ideia do currículo disciplinar, sua suposta incapacidade de dar conta da realidade pluridimensional, a criação de mecanismos integradores disciplinares ou a superação desse tipo de estruturação curricular.

AS DISCIPLINAS NÃO DÃO CONTA DA REALIDADE

  A globalização econômica, influenciada pelo capitalismo, torna fundamental que o conhecimento também se globalize e passe a  integrar diferentes campos, sob o risco de se tornar inútil. O processo de divisão do conhecimento é um processo no qual diferentes âmbitos de saber vão-se destacando e configurando em especialidades, e algumas dessas especialidades vão constituir disciplinas científicas.  A disciplinarização do conhecimento corresponde a um processo de seleção de dados considerados significativos e de rejeição de outros, agrupando-se de forma coerente um conjunto de objetos de estudo sob a rubrica de uma disciplina.  Trata-se de um processo histórico que se realiza nos limites de determinados paradigmas.

  Disciplinas científicas não representam apenas campos do saber definidos por pressupostos epistemológicos.  São espaços de poder instituídos, nos quais diferentes atores sociais buscam construir sua hegemonia.  A territorialização do conhecimento é, portanto, uma forma de poder, na qual diferentes especialistas delimitam rituais de iniciação.  Esses rituais envolvem o domínio não apenas do conhecimento, mas uma linguagem que diferencia o especialista dos não-iniciados, essa linguagem que atua como instrumento de diferenciação.  Essas disciplinas científicas tradicionais tornam-se incapazes de atuar isoladamente, levando à criação de novas especialidades híbridas, menos restritas.

  Santos (1989) estabelece que, mais do que problematizar a validade do conhecimento, a ciência hoje precisa questionar o sentido do conhecimento no mundo contemporâneo.  A concepção de ciência defendida por Santos repousa sobre a idéia de que a separação entre verdade epistemológica e verdade sociológica é insustentável.  Na medida em que a pós-modernidade assuma um conceito pragmático de ciência, cada disciplina científica passa a buscar compreender e transformar o mundo, dissolver as fronteiras entre o saber científico e o senso comum.

AS DISCIPLINAS ENTRAM NO CURRÍCULO

  Nem todos os campos de saber em que se subdivide o conhecimento científico têm lugar nos currículos escolares, mesmo nos currículos de cursos profissionais.  Quais os critérios para que existam disciplinas ligadas ao conhecimento matemático, às ciências naturais, ao estudo da língua, à geografia e à história?  Por que o privilégio dessas áreas do conhecimento em detrimento das ciências sociais, da filosofia, geologia, por exemplo?  Os critérios para a seleção dos campos do saber representados no currículo escolar não são científicos.  A criação de novos espaços curriculares para determinadas disciplinas mostra o quanto se modificam os nossos currículos ao longo dos anos.  Quais os critérios dessas mudanças?

  De acordo com Godson, analisando o caráter histórico da seleção de disciplinas que o compõem, o currículo é entendido como construção, mais ou menos coletiva, de um grupo de atores sociais que nele joga as suas crenças, convicções e seu trabalho.  Argumenta ainda que a gênese e a permanência de uma disciplina no currículo são um processo de seleção e de organização do conhecimento escolar para o qual convergem fatores lógicos, epistemológicos, intelectuais, rituais, interesses de hegemonia e de controle, conflitos culturais e questões pessoais.

  Goodson observou que uma disciplina escolar, ao ser criada,  busca resolver um problema imediato relacionado com mundo cotidiano dos alunos.  No entanto, para conseguir manter-se no currículo, precisa legitimar-se como área de saber científico, transformando-se em uma disciplina formal e distante da vida prática.  Esse fato aponta para a relação de utilidade prática do conhecimento escolar, com sua capacidade de resolver problemas do dia-a-dia dos alunos, e a organização disciplinar do currículo.  A maioria das disciplinas escolares estabelece-se no currículo não por constituir áreas científicas importantes na sociedade, mas por se mostrar capaz de lidar com os problemas cotidianos da vida em sociedade.  Ao mesmo tempo em que a  entrada de uma disciplina no currículo associa-se à utilidade prática  imediata, a sua manutenção depende da formalização do campo de estudos.

  As conclusões de Goodson mostram que tanto a criação de disciplinas escolares quanto sua manutenção no currículo apontam para tradições de valorização de determinados campos do conhecimento escolar, relacionados à origem social e ao destino ocupacional da clientela:  as classes média e alta são preparadas academicamente para a vida profissional (ocupação especializada), enquanto a baixa recebe um ensino ocupacional, mais utilitário, mais relacionado a ocupações não profissionais, nas quais trabalha a maioria das pessoas.

  A idéia de utilidade do conhecimento, cujo critério é um dos mais potentes na criação das disciplinas escolares, embora proclamada como fundamental nos discursos sobre a escolarização, tende a não se transformar em realidade, porque o conhecimento formal dissociado da prática constitui um poderoso elemento de diferenciação social.

FUGINDO DA DISCIPLINA:  TENTATIVAS FRUSTRADAS

As críticas à estruturação disciplinar dos currículos centram-se em aspectos ligados ao interesse dos alunos, assim como nos limites do próprio conceito de conhecimento.  A divisão disciplinar do conhecimento escolar é a responsável pela pouca relevância que parece Ter o que é ensinado nas escolas, e dessa forma, o conhecimento escolar torna-se incapaz de ajustar-se às questões práticas e vitais para a sociedade de hoje. 

 A disciplinarização curricular define uma organização inflexível que dificulta a realização de outras atividades que não as aulas tradicionais.  Aulas sucessivas, com diferentes conteúdos teóricos e num curto espaço de tempo (de geografia para matemática, passando pela língua pátria, etc).  As experiências prévias dos alunos são desvalorizadas em favor de uma lógica formalmente estabelecida por e para cada campo do saber.

  Os problemas da realidade ultrapassam os limites de uma especialidade.  Dessa visão, decorrem modelos de articulação restritiva das disciplinas escolares, definidos por Piaget (1979) como multidisciplinaridade.  Um mesmo tema é tratado por diferentes disciplinas em um planejamento integrado.  Respeita-se a lógica disciplinar dos diferentes campos do saber, apenas selecionando-se um tema de interesse social que possa ser tratado por um conjunto de disciplinas como tema fundamental.  Há uma tendência à valorização de determinados campos do saber, que são, freqüentemente, aqueles de maior prestígio social, e dessa forma, a integração é prejudicada pelo domínio de uma ou duas disciplinas.  

Os processos de integração se realizam não por um tema externo, mas pelas próprias interseções entre os diferentes campos do saber.  Elas devem partilhar espaços  comuns que precisam ser tratados em conjunto.  Dessas integrações acabam surgindo novas disciplinas acadêmicas na área de interseção entre duas especialidades, novas especialidades interáreas. A integração é feita pelas próprias disciplinas originais, criando uma nova disciplina que mescla teorias e métodos originários das disciplinas-mãe.  Essa integração foi denominada por Piaget (1979) de interdisciplinaridade, e define um processo em que se efetiva uma verdadeira intercomunicação disciplinar.

QUE SÃO OS TEMAS TRANSVERSAIS?

  Os que são propostos pelo MEC apresentam-se como mais uma tentativa de articulação entre as diferentes disciplinas que compõem o currículo, tendo por justificativa a incapacidade dessas mesmas disciplinas de dar conta da realidade social.  A forma de articulação não está bem definida, o que nos leva a imaginar que dificilmente se efetivará no currículo vivido das diferentes escolas do país.

  A base de estruturação do guia curricular do MEC é a disciplina, não a disciplina científica, mas a disciplina escolar.  Como são tratadas as disciplinas tradicionais?  Trata-se de disciplinas isoladas com especificidades próprias que não são articuladas no documento, a não ser naquilo em que naturalmente se articulam.

   Os PCN estão propondo a manutenção da lógica das disciplinas e a introdução de temas transversais de relevância social.  A despeito dessa relevância, os temas transversais serão introduzidos sempre que a lógica disciplinar permitir.  Para que os temas transversais funcionassem como eixo integrador das diferentes áreas do currículo e deste com a realidade social, seria necessária uma articulação entre as áreas e os temas transversais, ou seja, a seleção e a organização do conhecimento de cada área deveria Ter por fundamento os temas transversais.  No entanto, os documentos das áreas  buscam os critérios de seleção e organização de seus conteúdos nas próprias áreas, em uma suposta lógica interna das disciplinas, e os temas devem ser posteriormente encaixados.

   Os PCN não embutem, em sua lógica, a centralidade que afirmam Ter os temas transversais.  Se os temas transversais expressam as temáticas relevantes para a formação do aluno, por que não são eles os princípios estruturadores do currículo?  Por que não fazer deles o núcleo central da estruturação curricular e inserir “transversalmente” as diferentes áreas do conhecimento?  O compromisso da ciência recortada em cada disciplina deve ser com a prática social concreta que estabelece o sentido da atividade científica.  É o compromisso com a realidade social.

  Os temas transversais como: o meio ambiente, saúde, orientação sexual, etc., embora não correspondam a disciplinas formalmente estabelecidas pela comunidade científica, poderiam constituir disciplinas escolares nas quais se garantiria o enfoque científico multidisciplinar.  Essa constatação nos obriga a buscar entender por que os critérios de relevância social do conhecimento estão ausentes da estruturação disciplinar dos PCN. Percebemos, ao final desse trabalho, que os temas transversais, apresentados como fundamentais para a atuação crítica do aluno na sociedade, são, na realidade, postos em um patamar de importância inferior ao das disciplinas na organização do guia curricular, mantendo as disciplinas escolares tradicionais como centro do   currículo.


TEXTO:  Parâmetros Curriculares Nacionais: a falácia de seus temas transversais

Por:  Macedo, Elizabeth F. In: Currículo: políticas e práticas – Moreira, Antonio F. B. p. 43 a 58  

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